Queria escrever algo para te salvar o dia, mas se me permite o desvio, preciso antes salvar o meu. É rapidinho, você nem vai perceber, eu prometo. É que antes eu preciso me lembrar que mesmo quando a vida passa correndo e as dores me roubam o gosto da poesia, ainda um céu vai se vestir de rosa e passar dançando pela minha janela um dia.
Preciso lembrar que, bem cedinho, passarinhos vão passar por ali conversando e, de vez em quando, na mistura entre sono e vigília, eu vou entender o que eles dizem – é que quando a gente deixa, algumas coisas vão direto pro coração.
Eu preciso lembrar que mais tarde pelo correio vai me chegar uma camisa bordada à mão por uma mulher da comunidade da Maré, com fios formando flores de goiabeira. Que da caixinha também vai cair uma carta, enviada por uma amiga querida, e eu vou ser lembrada que alguns laços são sempre farol.
Por mensagem, vou receber a foto da bebê iridescente mais linda que já nasceu, de uma mãe que a desejava demais. E a minha mãe vai entrar pela porta do quarto e estender em minha direção uma florzinha branca que colheu do jardim.
É preciso lembrar que sempre haverá amigos a uma chamada de distância. Que novas pessoas vão entrar em nossas vidas e sustentar nossas palavras, sem fugir. Lembrar que existirão sorvetes em dias quentes que farão seus olhos fecharem prazerosos por um momento, que bichinhos vão correr felizes na sua direção, que estranhos vão te entregar sorrisos de graça pelas esquinas.
Lembrar que às vezes, enquanto você estiver escovando os dentes, vai voar por descuido uma bolhinha de sabão. E quando estiver andando pelas ruas, bolhas saindo da brincadeira de uma criança vão cruzar seu caminho só pra estourar no seu nariz.
Ainda existirão sorrisos, risadas, danças pela cozinha e convites pra dançar. O sol vai brilhar entre os galhos de uma árvore, momentos em silêncio vão tomar a forma de uma oração, o cheiro de um hidratante na sua pele vai te fazer sentir sagrada. Ainda existirão viagens, abraços e carinhos – por todo o corpo e pela mais inesperada palavra.
A vida que passa correndo às vezes rouba o gosto da poesia, mas é preciso lembrar com o coração que o encanto ainda há de te encontrar de novo e sempre mais uma vez, perdido em 1 minuto qualquer, carregando a força descomunal que, meio que sem querer, ainda salva os nossos dias.
Para além da dor e do cansaço, existe aí uma alma inspirada e inspiradora, q renasce na dança das palavras e na leveza coesa de um texto. Presença necessária, relatos precisos e ainda assim poéticos da vida. Essa sim é o presente.